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domingo, 24 de agosto de 2014

Sobre nosso dom de se meter em confusão



- O momento é ótimo para colocar os pingos nos "i"s, diz no meu horóscopo.
- Aí, aproveita.

Estavamos sentados nessas mesas de alumínio com propaganda de cerveja. Meu olhar ia do jornal para o mato espesso da Reserva, ziguezagueando meio ansioso. Era um dia quente e úmido, como costumava ser em Buenos Aires, céu azul e sem nuvens.

- Tem algo sádico em ler horóscopo, pelo menos da minha parte. Sempre leio com ironia. Até tento levar a sério, mas é impossível. Colocar pingos nos "i"s. Como pode ser um bom momento pra isso? Se os "i"s ficaram sem pingos, é porque nunca é um momento agradável pingá-los. Entende o que eu quero dizer?

- Sim. É, acho que a idéia é mais... te dar uma idéia do que fazer no dia. É coisa de gente desocupada que não tem o que fazer.

Fiquei encarando-o esperando mais filosofias baratas. Ele não estava muito interessado. Respirei fundo, fechei o jornal, encarei o horizonte largo da Reserva. Gostava de olhar as árvores distantes que se pareciam com brócolis daquela distância. Houve um momento de silêncio e eu quis puxar mais assunto.

- Colocar pingos nos "i"s. Sabe o que eu acho que eu deveria fazer? Deveria parar de ouvir música por um tempo. - Ele me olhou assustado esbugalhando os olhos na minha direção, como se eu estivesse falando algo realmente incompreensível e imperdoável. Me adiantei em me explicar. - Você sabe, pra esquecer tudo isso. Não sei, tenho a impressão de que é tudo culpa das músicas. Tem sido um martírio escutar as músicas dele, e eu não consigo me concentrar em outra coisa que não o evoque. Talvez se eu parasse de escutar, ficaria mais racional, menos idiota. Quero provar. - acendi um cigarro.
- Tanto assim você gosta dele? Pensei que fosse mais uma das suas paixões efêmeras.
- E é. Justamente estou tratando de fazê-lo evaporar.

Encaramos as árvores outra vez. O ar quente e úmido dava uma impressão mais pesada para a conversa. Provavelmente iria chover, à noite, no domingo. Era como se estivessemos agarrados em um líquido grosso e espesso que nos impedia de ser leves e fluídos. Ele olhou de canto de olho pra mim, eu sorri.

- Onde nos metemos hein?
- Somos bons em se meter em confusão.

Levantei e me espreguicei. Pessoas passavam correndo, de bicicleta, conversando animadamente umas com as outras. Crianças, cachorros, famílias inteiras. Ninguém via a gente.

- Acho que seria uma bosta se eu tivesse vivendo isso sozinha. Estar metida nessa novela mexicana com você faz tudo parecer menos dramático, menos horrível. O dia que você quis ir embora foi horrível, me senti gosmenta. Mas aí você voltou, e ficou tudo bem. Quero dizer, nada está resolvido, mas o fato de você estar por perto fazem as coisas serem melhores. Que bom que a gente tem amigos nessa vida, mano.